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Conto: Daqwar Edon & Laínnstia – Noite Sangrenta

Os últimos feixes da luz do pôr do sol tingiam as areias do grande Deserto Saatagâmico de laranja; em breve as Luas Irmãs roubariam as cores do ambiente para brilharem. Ademais, elas também eram um sinal para uma dupla singular.

Esperando pacientemente na abertura de um cânion estavam: um humano, ele usava uma longa túnica negra com um capuz; também vestia um poncho avermelhado como sangue e no pescoço um cachecol estranhamente grosso, ele se intitulava Edon; uma serpe negra, deitada a pouquíssimos metros de seu companheiro. Era um ser comprido e esguio com asas como de morcegos e face como de uma estranha víbora, ela se intitulava Laínnstia.

Ambas as espécies, humano e serpe, nem sempre se davam bem, mas aquela união podia ser explicada de forma simples: Edon é um caçador de recompensas cujo maior objetivo é se livrar da glaive amaldiçoada que o tal deve sempre portar; Laínnstia não era uma serpe, mas sim uma jovem nobre transformada em besta por uma bruxa, portanto, seu desejo é voltar à sua forma original.

Apesar de estarem juntos como dupla há cerca de dois meses, a relação entre os dois ainda se mantêm como uma troca de favores. —Você me ajuda a quebrar a maldição dessa arma e eu lhe ajuda a voltar para sua forma humana, certo? Lembrou Edon, depois de encarar o artefato e as runas escritas nele.

— Está tentando novamente ler essas runas? Grunhiu, Laínnstia, numa língua que só Edon entendia.

— Sim, mas nem a droga da minha magia de Entendimento Arcano consegue decifrá-las. Respondeu o rapaz, repousando a arma em suas pernas e tentando aliviar sua dor de cabeça com uma massagem na têmpora.

— Desse jeito suas próprias magias vão lhe matar ao invés da maldição da arma.

— Por favor, não me enche o saco. Vai, vai ver se o bando do Ladrão de Caravanas está escondido na rota ali embaixo.

A serpe sibilou de raiva, abriu as asas e alçou voo.

Na base daquele cânion havia um lago que escapava para fora de uma grande caverna que havia debaixo daquela montanha. Era impossível de se ignorar aquela fonte de água pura em meio a um mar de dunas. Então o lago se tornou um conhecido ponto de parada obrigatória para os viajantes, dos quais os saqueadores almejam tanto as riquezas.

Lá de cima, a serpe, com sua visão aguçada de caçadora, avistou barracas serem armadas ao redor do lago bem como os caravanistas e seus camelos saciando sua cede, mas nenhum sinal de ameaças ou algo nesse sentido.

Sobrevoou, silenciosa como uma coruja, até a noite cair. Ficou vigiando os viajantes se alimentarem e se repousarem. Espionou-os mais do que Edon esperava.

—  Aquela cobra voadora deve estar hipnotizada pela própria capacidade de voo, de novo. Falou   consigo mesmo, Edon.

Convencido de que Laínnstia não voltaria tão cedo, o humano usou de algumas artimanhas sobrenaturais para esquentar seu desjejum, como era comum entre magos peregrinos. Mesmo com sua dor de cabeça ardendo desconfortavelmente, acreditava que um pouco de comida a aliviaria.

— Parece que lhe achamos, Daqwar! Uma voz grossa, em tom sarcástico, chamou ao jovem que, mesmo quase entorpecido pela sua condição mental, sacou dois sabres que repousavam em um cinto que usava por cima da túnica e adotou uma postura defensiva enquanto se virava para a voz.

A escuridão revelou apenas a silhueta de quatro indivíduos contando com o possível dono da voz, mas Edon sabia que qualquer um que almejasse matá-lo levaria meia dúzia de pessoas no mínimo.

— Saiam daqui, ou os mato mais rápido do que um falcão em caça! Exclamou o mago, também apontando uma de suas lâminas para tentar gerar intimidação, mesmo sabendo que sem Laínnstia era como se ele estivesse aceitando uma briga.

— Não tem como escapar, mago, você está fraco demais, também vejo que não está com sua serpe horrenda, será mais fácil de lhe matar então. Disse novamente a voz. Uma das silhuetas fez um sinal e dois sujeitos avançaram em direção à Edon pelos flancos.

Pela sua percepção treinada, Edon logo percebeu as ameaças e girou o corpo para seus sabres trespassarem os atacantes. Duas batidas secas indicaram que seus ataques foram defletidos efetivamente. Aquele realmente não era um bom momento para um combate solo, então gritou pela parceira enquanto correu para uma direção onde imaginava não haver ninguém.

A escuridão parecia estar a favor dos inimigos, pois o jovem esbarrara em alguém que logo agarrou seus braços com força para desarmá-lo e virá-lo à frente.

Sua certeza anterior foi confirmada quando a luz da fogueira que havia preparado, revelou nove indivíduos sem contar aquele que o segurava. Todos trajavam roupas típicas daquela região desértica e, com exceção do provável líder daquele bando, portavam armas de pedra.

— É o seguinte… disse o dono daquela voz; um humano de aparentemente meia idade, cujo rosto estava coberto por um capuz e uma máscara à semelhança de Edon.

— A gente te deixa vivo se você nos entregar seu amuleto, ouviu bem? Finalizou a fala apontando e apertando sua adaga contra o cachecol do mago.

Edon gelou, não do medo pela descoberta de onde escondia o item citado, mas porque o artefato também tinha sentimentos e compartilhava parte deles com seu portador.

O indivíduo que agarrava o mago abaixa o capuz do jovem de forma bruta e, da mesma forma, descobre a boca do tal da máscara que a escondia. Com aquela última ação, Edon cospe na face daquele que amedrontou seu amuleto, enfurecendo-o ao ponto de fazê-lo levantar a adaga em alta velocidade e sua lâmina rasgar parte da sobrancelha do mago.

Edon fechou os olhos e rangeu os dentes com a dor que latejou em toda sua cabeça; logo viu a adaga ser pressionada contra ele novamente, mas dessa vez em sua bochecha direita.

— Última chance! Onde está aquele seu amu…

De repente o sujeito desapareceu diante de seus olhos.

Na verdade, nem mesmo a luz da fogueira conseguiu revelar a criatura que acabara de raptar o mau encarado. Um estridente grito de pavor e dor foi ouvido e interrompido no céu e então o corpo estripado do líder daquele bando caiu sobre um de seus capangas.

Mesmo visivelmente em maior número, os inimigos, já de armas empunhadas adotaram uma postura defensiva ante a presença aterradora da criatura. O medo dos companheiros também contaminou ao indivíduo que segurava Edon, fazendo-o largar o mago e voltar sua atenção ao céu noturno enquanto sacava sua cimitarra de pedra.

Edon rastejou rapidamente até ter em mãos sua arma amaldiçoada. Suas runas brilharam, ela desejava sangue humano e Edon devia obedecê-la, senão morreria.

Com vantagem pelo retorno de sua parceira, o mago e a serpe fizeram o combate ferver em cortes, sangue e tripas. O massacre pôde ser presenciado pelos caravaneiros que acordaram com a confusão e assistiram ao confronto pelas silhuetas que a fogueira formava lá encima do cânion.

Eles não pensaram duas vezes: arrumaram as coisas e fugiram o mais rápido possível mesmo não sendo alvos da dupla ou bando.

Cerca de trinta segundos depois do confronto, Edon e Laínnstia se encontravam descansando os músculos tensos e a mente agitada numa parte distante de onde os corpos estavam.

— Você demorou demais nesse seu “transe de voo”, eu podia ter morrido se eles tivessem me pegado de surpresa, reclamou Edon, vendo seus longos e brancos cabelos tingidos de sangue.

— Me dê um tempo, deixa eu aproveitar que aprendi a voar estavelmente! Mesmo o mago estando certo, a besta ainda mantinha a personalidade mimada que toda nobre tem.

Ambos ficaram em silêncio, em especial Edon, frustrado por ter quase seu amuleto roubado, seu cabelo sujo de sangue e descoberto que eles eram na verdade Caçadores de Magos sem ligação com o Ladrão de Caravanas. Por outro lado, ele não precisaria mais alimentar sua glaive com o próprio sangue como fazia quando não achava nenhum que merecia morrer pelo fio sempre afiado dela.

Por fim, uma lembrança repentina do ocorrido surgiu e ficou martelando em sua cabeça por dias a fio. Um mistério que ele decidiu manter em segredo, mas que mudaria a vida dele e de sua parceira: por que aquele homem o chamou de Daqwar?

Vini M. Freire

Imagem feita pelo autor do texto.

 

 

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