YASMIM está do meu lado. Na outra ponta da janela, Júllya, sozinha, olha para a mesma direção. Nós três sorrimos para o quarto personagem desta cena, que não aparece no retrato, pois é ele quem tira a foto, Júlio. Todos estamos risonhos. Afinal, este é um dia muito feliz, como muitos que tivemos nesta escola. Hoje nos despedimos dela, e de muitos dos amigos que fizemos.
A sala é a do 8º ano, uma turma de apenas 8 alunos: Enrique, Erick, Renan, Samuel, Israel, Hiago, Júllya e a Yasmim. É quinta-feira, dia 19 de dezembro de 2024, e toda a Escola Municipal Justina Francisca de Sales, dos Cupins, se organizou para comemorar mais um encerramento de ano letivo. Mas, dessa vez, com um tom especial e um pouco melancólico: todos os alunos do Ensino Fundamental 2 sairão da escola definitivamente e passarão a estudar em Piripiri, no ano seguinte. Até então, só os concludentes do 9º ano passavam por isso. Mas, no fim de 2024, todos fomos pegos de surpresa. Por isso, nesta quinta-feira, estamos celebrando um momento especial.
Cada turma preparou a própria festinha em sua sala. Eu já passei em todas, assim como os demais professores. Os comes e bebes, as despedidas e discursos, e, claro, as fotos. No 8º ano, porém, quis fazer uma foto diferente. Estávamos todos juntos, e de repente me veio a ideia. Chamei as duas meninas, sempre tão próximas e amigas, e as convidei para uma foto especial. Uma foto não de dentro da sala, mas de fora. Uma foto em que nós três mirássemos, da janela, um outro horizonte, distante e inusitado. Uma foto que nos mirasse, de fora da sala, tal como éramos naquele momento, só um professor e duas alunas, felizes de estarmos ali. Pedi ao Júlio para pular a janela e nos captar de fora. Ele topou na hora. E ensaiamos diferentes posições. Uma delas, mais que todas, me deixou intrigado, pela beleza e delicadeza que revelava.
Agora que tudo mudou, não consigo olhar para ela sem reviver tanta coisa que aconteceu e sentir o peso que ela carrega, a partir de então. Porque a Yasmim não está mais aqui.
Olho o retrato. Júllya sorri do seu jeito tímido e cheio de vida. Está com um vestido azul e uma faixa marrom dividindo seu cabelo cacheado. A Yasmim ri um riso expansivo, rindo com os dentes e com os olhos. Está com um vestido vermelho carmim e um crucifixo no peito. Eu, por trás dela, rio com os olhos quase fechados. Estou com uma camiseta cor de açafrão. Com as janelas verdes e as paredes em branco e verde, a fotografia ganha contornos suaves, como uma pintura em aquarela. Ela prende a atenção. E mais do que qualquer outro retrato que eu já tenha visto e revisto, esse parece estar vivo, em movimento.
Fui professor das duas por dois anos, em 23 e 24. Elas sempre me chamaram a atenção. Meninas humildes, mas inteligentes, numa turma de meninos. Uma mais tímida e reservada, a outra mais desbocada e afoita. Elas se completavam em sua amizade. Eram duas bonitas e cheias de vida e graça. Gostavam de ler e escreviam muito bem. Como duas adolescentes, tinham os seus segredinhos, os seus amores, as suas angústias, suas queixas e infindáveis conversas, entre elas ou com o Hiago.
Das felicidades que a escola nos presenteia, como professores, poucas são tão ricas e prazerosas quanto essa intimidade, esse contato direto com a vida bem ao lado, acontecendo e se dizendo à nossa frente, a vida de tantos jovens que murcham ou desabrocham todos os dias nos corredores das escolas. Sempre me senti vivo e alegre por estreitar a minha vida com a vida de tantos estudantes, todos os anos, em tantos lugares e situações diferentes. Mas nunca o drama de uma aluna me atingiu da maneira que o drama da Yasmim.
Imaginar que aquela graça, aquela irreverência, aquelas tiradas tão debochadas, tão sinceras, tão sarcásticas, tão vivas, de uma menina que nem tinha 15 anos, não estão mais aqui! Tanta sede de viver, tanta afoiteza, tanta amizade, faceirice, charme... Seus cabelos pretos cacheados (quase sempre molhados), os lábios carnudos, os olhos grandes e o nariz arrebitado, que podiam parecer um conjunto meio desengonçado, naquele corpinho fino e comprido, mas que nela era de um charme inconfundível (que se somava à sua forte e expansiva personalidade). Para onde foi tudo aquilo? E a voz dela, que ainda ouço, risonha e desatinada, franca e certeira, onde?
O mistério da sua partida é grande demais para assimilar. “Tão jovem e cheia de vida”, como tantas outras. Não obstante, agora ela está encantada. Como tantas outras. A sua morte nunca será entendida, a despeito do que se diga, a despeito do que se queira. O que viveria, o que faria, quem seria, no futuro, tudo ficou interrompido. Abruptamente eliminado, desperdiçado. Mas a sua vida, mesmo que curta, continua reluzente, vibrante, viva. Na memória de todos os que a conheceram, de todos os que foram tocados pela sua graça. Colegas, amigos, professores, família, um amor…
Nunca fui ligado a retratos. Na verdade, não sou de tirar fotos nem de fitar por muito tempo a imagem de alguém, vivo ou morto. Há algo de inquietante e monótono em ter uma mesma fotografia sempre olhando para você. Numa parede, na estante ou na tela. Que sentimentos a foto nos impõe, quase como uma obrigação? Sei que há momentos da vida que nos orgulhamos, momentos que não queremos esquecer, momentos que são de uma grandeza ímpar. Mas penso que, muitas vezes, os retratos acabam por banalizá-los, por estarem constantemente ao alcance dos nossos olhos. Por isso, prefiro passar sem eles.
Até janeiro deste ano, eu só tinha dois retratos de pessoas encantadas perto de mim. O da minha irmã e o da Cecília Meireles. Uma, sempre me olha da minha escrivaninha. A outra, me vê pelas costas, perto dos seus livros de crônicas e poesias. Eram retratos de duas pessoas por quem eu tinha um amor para além do comum. Mas os retratos, em si, não guardavam uma história.
Agora tenho um terceiro retrato. É o da janela, com Júllya, Yasmim e eu. Esse, sim, tem uma longa história. E parece que, quanto mais o revejo, reflito sobre ele ou volto à sala de aula, mais sentidos ele carrega. Afinal, o que guarda um retrato? Guarda apenas uma lembrança, sepultada no passado, e, por isso mesmo, triste, melancólica, morta? Ou pode guardar a vida, cristalizada num momento e perpetuada na imagem?
Sei que esse retrato me diz hoje muita coisa. Ele fala de um dia feliz. Ele fala de coisas tristes. Ele fala de pessoas que conheci e amei. Ele fala de amizade, de sonho, de esperança, de alegria, de união. Ele ainda me revela, às vezes, uma Yasmim ou uma Júllya em cada turma que eu conheça agora. Não que eu as procure em outros lugares, mas sinto que aquilo que habitava nelas está também em tantas outras jovens — e ainda está nelas, estejam onde estiverem.
O retrato guarda também um evento familiar e inédito. Por causa dele, meus filhos me viram chorando pela primeira vez. E agora, por qualquer motivo, quando me pegam a olhar para o retrato, reparam em mim para ver se estou de novo a chorar. (E eu ainda não sei explicar por que ou por quem eu chorava. É difícil dizer. Pela Yasmim ou pela minha irmã, outra vez? Pela vida que nunca volta atrás? Ou pela saudade, que dói como um barco, que aos poucos descreve um arco, e evita atracar no cais, como diz a canção?)
Sei que agora tenho mais um retrato a guardar, fora e dentro de mim. Uma cena mais que bonita, de um dia feliz como poucos em minha vida.
Enquanto ele estiver na minha estante, perto dos livros que tanto Júllya quanto Yasmim leram um dia, esse dia vai estar vivo. Creio até que vou pular dessa janela e ouvir a voz e o riso da Yasmim....
Diego Renê,
A um mês do encantamento da minha aluna Maria Yasmim.
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A seção Rumos Vários é sempre publicada aos domingos, a cada duas semanas. A ilustração é da minha filha, Celina Yukie.
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