Vejo de longe o meu filho brincando, e ao contemplá-lo, tento alcançar toda a pureza e ternura que se escondem por trás dos seus gestos. Ele acaba de completar 4 anos, tem um sorriso e alegria que emocionam a gente. Quando corre e pula, lembra um borreguinho saltitando. Mesmo quando faz cara feia e zangada, reconhece que é faz-de-conta e logo se entrega à risada gaiata. Ele entende que a sua vida é uma eterna brincadeira.
Sua irmã, com 6 anos e meio, já tem ares de mocinha arteira e vaidosa, dona de si e com opiniões mais fortes que as dos próprios pais. Uma Emília em carne e osso. Mas melindrosa e sentimental que só ela. Se emociona com uma árvore podada, com os gatinhos da rua, ou com os sentimentos que sabe reconhecer nas outras pessoas. Inquieta-se com as injustiças do mundo e se enfurece quando vê coisa errada. Uma doce miniatura de gente.
Dante e Celina formam bem um casal de filhos como o sonho de muitos casais. É difícil imaginar felicidade tão pura e concreta como a de ter como filhos duas crianças como ele e ela. Como pai, há um universo de coisas e amores que sonho apresentar e transmitir a eles. O gosto pela natureza, pelos livros, pela música, pela palavra, pelos outros, pela vida. É tanta coisa. Coisas que já estão neles e algumas que já passamos a eles.
Mas há também um universo de aprendizados que eles fazem por si mesmos. Como pais, vamos descobrindo e aprendendo juntos quem são e do que são capazes. Nessas horas, é espantoso descobrir que nós, adultos, tropeçamos, desajeitados, diante da realidade imediata e viva que é o mundo para as crianças. É difícil, então, não lembrar daquela passagem dos evangelhos em que os discípulos chegam a Jesus e perguntam-lhe quem é o maior no reino dos céus.
Em verdade, vos digo, se não converterdes e não vos tornardes como as crianças, não entrareis no reino dos céus. Mas quem se tornar humilde como esta criança, este é o maior no reino dos céus, assim fala Jesus. E logo em seguida, diz algo ainda mais revelador: Quem acolher, em meu nome, uma criança assim, a mim é que me acolhe. Fala o homem que viveu e morreu há 2 mil anos atrás. Como homem viveu, e como homem morreu. Mas no imaginário de toda criança criada na tradição católica – e ainda mais forte, na cultura sertaneja –, Jesus encarna a figura fantástica de um herói, de um sábio, de um mártir, de um santo, de um deus, do Deus, do filho de Deus, ou do Filho do homem, como diz o texto bíblico. Talvez, ainda mais intrigante, do filho de Maria, a Virgem Santa.
Jesus é o coração da vida espiritual de uma infinidade de pessoas. Mesmo numa tradição religiosa que conta com figuras tão inspiradoras e legendárias como Abraão, Moisés, Davi, Salomão, São Francisco, São João da Cruz, Santa Teresa D'ávila e tantos outros beatos, Jesus é o axis mundi desse universo. Um grande Sol, em torno do qual muitos mundos orbitam. E do qual é difícil fugir de sua regência.
Criança, fui criado na tradição e no imaginário católicos. Criança, me encantavam as histórias de Jesus e seus apóstolos, a sua paixão e morte e a sua mensagem de amor universal entre os homens. Me encantava especialmente aquele universo bíblico e desértico, tão semelhante ao dos meus avós sertanejos. Aquelas ilustrações simples mas muito expressivas dos livrinhos vermelhos de catequese eram um adorno a mais na minha imaginação religiosa. Mas como criança, era difícil assimilar o mistério da morte e ressurreição, ou ainda, o da expiação dos pecados humanos na cruz. Um peso e terror insustentáveis demais para a leveza de um menino.
Jovem ainda, conheci outras tradições espirituais. Sidarta Gautama e as Quatro Nobres Verdades, Lao-Tsé deixando o seu Tao Te Ching a um amigo e indo embora, montado no seu búfalo, a relutância de Arjuna diante do combate espiritual e os conselhos de Krishna no Bhagavad Gita, os poemas místicos de Rumi ou a dança sufi dos dervixes, os Lamas do Tibete, todos os yogues da Índia, os homens santos dos sioux e de todos os outros povos indígenas. Perante essas tradições espirituais, a figura de Jesus não ficou ofuscada. Pelo contrário. Ao perceber, em tantas histórias diferentes, um mesmo princípio sagrado, as palavras e o exemplo de Jesus se realçaram. Seu exemplo é ainda mais especial porque foi minha primeira imagem do mistério encarnado em vida.
Como homem e como pai, a espiritualidade é também um valor, um grande aprendizado que eu gostaria de legar aos meus filhos. Como o amor e a amizade, ou o valor do desejo, dos sonhos, da coerência, da fantasia e tantos outros. Mas a minha espiritualidade é uma descoberta cotidiana. Sem me ligar a nenhuma tradição, mas reconhecendo e admirando muitas delas, eu quero estudá-las e, principalmente, exercitá-las no meu dia a dia, naquilo que elas me alcançam e me tocam. Mas eu não tenho uma filosofia, não tenho uma explicação para o mundo, senão a que a poesia me ensina. E a poesia ensina que qualquer racionalização do mundo e da vida é tentativa vã de tocar a Verdade. Vaidade de vaidades.
Por isso, é tão importante pensar em forma de poesia. E o que é a poesia, senão metáforas? Metáforas, como as parábolas. E volto a Jesus. Ele ensinava por parábolas. A parábola do semeador, a do joio e o trigo, a do grão de mostarda. Para os homens de sua época e para aqueles de todas as eras, a parábola surge como uma imagem da verdade. Muito mais do que uma racionalização, ela é um exemplo para a imaginação e para a prática.
Dante junta as duas mãozinhas e diz: “Abençoe, Jesus, a minha família, a mamãe, o papai, e a Ceiina. Abençoe, Jesus, a minha casa e a nossa comida. Abençoe, Jesus, a minha amiguinha Helena. Eu tô com muuuita saudade dela. Obrigado, amém.” Não sei quem lhe ensinou essa oração. Juro. Provavelmente as avós. Uma é católica, a outra evangélica. O nome Jesus é o centro das duas crenças. E se mistura, sem dúvidas, com a imagem de Deus. Para Celina, são a mesma pessoa. Mas aí, ela se confunde. Jesus é jovem e barbudo. O Deus que ela vê nas imagens é velho e barbudo. É Jesus velho? Mas Jesus não é filho de Deus? E ela ainda nem ouviu falar do Menino Jesus… Falta ler para ela o “Poema do Menino Jesus”, do Fernando Pessoa.
Certo dia, o Menino Jesus, cansado do céu, foge de lá e vem morar com o poeta. Ele diz que no céu tudo era grave e em desacordo com seu espírito de criança. Tinha de subir na cruz e espetar sua cabeça com espinhos, ou de fingir de segunda pessoa da Trindade. Melhor brincar nos campos, rir alto e fazer estripulias, deixar-lhe ser criança. O poeta confessa: A mim ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas, Quando a gente as tem na mão, E olha devagar para elas. O poeta dá-se tão bem com o deus menino que chega a imaginar que Jesus mora em sua alma, e à noite, nos seus sonhos, escuta-o sorrindo e batendo palmas, sorrindo para o seu sono.
Jesus. Filho de Deus, Filho do homem, homem, filho da Virgem, deus e Deus, rei dos reis, sábio dos sábios, herói e mártir, irmão, amigo, camarada. São muitas as relações que podemos ter com a figura central da nossa tradição espiritual. Por agora, eu fico com o Deus Menino, ou, como na canção, Gegùbambino. Afinal, o reino é das crianças, ou daqueles que têm uma criança dentro da alma, que carregam no coração a ternura e o amor de uma criança, do Menino Jesus.
Hoje, por causa dos meus dois filhos, meu coração tem caminhado por fora de mim. Mas quero acreditar que, por causa deles, eu também tenho a pureza e a verdade do Coração de Jesus morando, sonhando, e rindo comigo.
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A seção Rumos Vários é sempre publicada aos domingos, a cada duas semanas. A ilustração é da minha filha, Celina Yukie.
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