NEM BEM DESPERTO, e lá estão elas com seu trinado estridente. Faz algum tempo que se tornaram moradoras da minha varanda, desde que eu coloquei um ninho de barro para elas. Em poucas semanas, deram conta da casinha e se apossaram da morada. De lá pra cá, já nasceram ali algumas dezenas de garrinchas. Elas são minhas primeiras companheiras de todos os dias.
Hoje, manhã de neblina, acordei com as garrinhas e uma orquestra completa de cantos variados. Uma rolinha são-joão arrulhando sobre o poste. Os bem-te-vis matraqueando em todas as direções. Os vim-vins, miúdos e amarelinhos, assobiando os seus fim-fins. Os xexéus, voando longe, gralhando e arremedando as outras aves. As casacas-de-couro martelando um som agudo e certeiro. O pitiguari entoando um canto solitário e encantador. E, completando o coro, o meu favorito, o joão-bobo, que canta em sussurros ecoados pelos outros joões-bobos.
A Fonte dos Matos, afinal, é um pequeno oásis para as aves, em meio ao descampado de casas, prédios e postes da cidade. Aqui, não há um dia que eu não veja ou ouça, no mínimo, umas 20 aves diferentes. Garças, marrecas, tizius, tetéus, pais-luiz, socós, siricoras, pipiras, trivinas, beija-flores, anuns pretos e brancos, almas-de-gato, lavadeiras, as rolinhas sangue-de-boi e fogo-pagô, juritis, ou até os exóticos mandarins. Além de um incontável número de aves cujo nome desconheço, mas nem por isso deixo de admirá-las.
Não sei o que torna esse lugar tão especial para as aves. Talvez seja a mata ainda virgem que é tão bonita e gostosa de ver e sentir, com dois riachos que a cruzam e que vão se encontrar no Horto. Um deles, inclusive, dando nome ao bairro, com o seu olho d’água. Já no século XIX, Estevão Rabelo, chefe político da Vila de Peripery e proprietário de fazenda por estas bandas, parafraseava o poeta Casimiro de Abreu com essa quadra:
Todos cantam sua terra
Também vou cantar a minha
As aves da Fonte dos Matos
Cantam mais do que galinha.
Apesar de cômica, tenho de concordar. As aves, por aqui, cantam mais do que galinha. E de todas, não há quem cante melhor do que uma certa avis rara: a sabiá.
Esses dias, no entanto, seu canto tem rareado. E já sinto a sua falta. A sabiá que canta na minha casa é diferente. Não é a laranjeira, de peito alaranjado e símbolo nacional. A sabiá que se fez a senhora da minha estima é outra: a sabiá branca. Ela é quase do mesmo porte e cor da sabiá tradicional, mas tem o peito acinzentado e um canto levemente diferente.
Costuma cantar no fim da tarde. Vez por outra, canta também pela manhã. O que me fez apegado a essa, em específico, é que ela, sem que eu me desse conta, foi aos poucos fazendo parte dos meus dias de um jeito sutil, e, quando enfim já me afeiçoara à sua companhia, ela deixou de cantar. Agora, anseio o seu retorno.
Aves são animais fascinantes. Seres alados, vários, coloridos, minúsculos ou enormes, que ainda por cima cantam de tantas maneiras. Melodias maviosas e ternas, ou trinados ríspidos e agudos. Não há quem não se espante com o piado da rasga-mortalha. Ou quem não tema o gemido do acauã. Ou ainda quem não se comova, para o bem ou para o mal, com o assobio da peitica. Eu acho todos divinos e nenhum agourento. Para mim, não há alegria mais besta, porém única, do que ouvir as curiquinhas vassourinhas passando e piando por cima da minha casa.
Mas eu não troco o canto fugaz de todas essas aves pelo gorjeio da minha amiga, a sabiá branca. Dia desses cheguei em casa exausto, com o juízo a explodir e a mente saturada de falsas urgências. Foi só ouvir a sabiá para ir até o quintal. Lá estava ela. Foi a primeira vez que pude vê-la num galho a cantar. E eu, tão confuso e cansado, fiquei enlevado por aquele gozo de ouvir um canto tão terno, sereno e variado. E tão só meu. Porque, naquele dia, naquela tarde, aquela sabiá cantava para mim. Eu era a única testemunha dos seus amores. Eu era o único que a entendia. E extasiava-me com aquele som, com aquela cena.
Desde então, eu aguardo que ela cante de novo. Não sei se ainda a verei como naquele dia, mas não importa. Só quero ouvi-la, seja às cinco da manhã ou às cinco da tarde. Tem dias que a ouço, tem dias que não. Ela não é minha, ela é das matas, desses bosques da Fonte dos Matos. Ou até de mais longe, vindo aqui só passear.
Quando criança, fui menino de caçar passarins, prendê-los em gaiolas e até acertá-los de baladeira. Sim, um dia, eu matei uma sabiá. Lembro-me ainda. Com um tiro ela caiu. E com a brutalidade que às vezes só crianças sabem ter, eu a coloquei no bornal junto a outras aves.
Hoje, poucas coisas me alegram mais, ao longo do dia, do que ver as aves livres. Vê-las em sua variedade tão excêntrica e sonora. É uma pena que tão pouca gente se dê conta de sua existência. Que pena viver e não se apropriar das coisas mais simples e bonitas do cotidiano. Que pena passar um dia sem ouvir um passarinho, sem se dar conta do canto de tantos deles, ou mesmo, do nome deles.
Os pássaros são uma boa metáfora para o que é a alegria. Ela vive em movimento, nunca se prende a canto algum, é leve, variada, sonora e vibrante, e ama a liberdade. Bem diferente de um pássaro engaiolado. Por isso, tenho de acatar os voluntarismos da minha amiga, por mais que me doa a sua ausência.
A ela, que há dias não ouço, eu faço uma glosa, continuando aquela quadra:
Todos cantam sua terra
Também vou cantar a minha
Cá é sempre primavera
Onde reina uma rainha.
Na bela Fonte dos Matos
E nos seus vastos confins
Cantam pombas, cantam patos
Cantam muitos passarins.
Mas não há quem tão bem cante
Pelas palmeiras de cá
Com canto tão elegante
Que minha amiga sabiá.
Volte, companheira. Você tem feito falta.
Diego Renê
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A seção Rumos Vários é sempre publicada aos domingos, a cada duas semanas. A ilustração é da minha filha, Celina Yukie.
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